Enquanto o Brasil se torna o novo epicentro da pandemia, motoristas Uber precisam escolher entre arriscar seu bem estar e desistir de sua principal fonte de renda. O que há de novo nisso? Conversamos com três motoristas de Belo Horizonte para descobrir.
Por Ana Guerra
O Brasil é o maior mercado da Uber fora dos Estados Unidos, com mais de um milhão de “parceiros”. Recentemente, o país bateu outro recorde como a pior eclosão de COVID-19 no mundo depois dos Estados Unidos, com 772.416 casos confirmados e mais de 39.000 mortes até 11 de junho. Este artigo explora o impacto da pandemia em uma população social e economicamente marginalizada: motoristas Uber. Ele traz à tona preocupações que povoam seu cotidiano enquanto circulam pelas ruas de Belo Horizonte, a sexta cidade mais populosa do Brasil.
Por dentro dos modelos preditivos da Uber
A plataforma transnacional, que opera em 63 mercados nacionais pelo mundo, é conhecida como um exemplo da economia sob-demanda, ou “economia de bicos”. Se por um lado ela confere um certo grau de independência aos trabalhadores, por outro, não os fornece estabilidade ou qualquer tipo de proteção . Trabalhando sob um regime de trabalho altamente datificado os motoristas se veem em meio a rotinas exaustivas e privados de direitos trabalhistas, já que não são classificados como empregados.
Como esse modelo funciona? A plataforma emprega uma série de técnicas de gerenciamento algorítmico da força de trabalho dos motoristas a partir da combinação entre um ideal de livre mercado autorregulado e análise preditiva, o que costuma ser apresentado como um modo de minimizar incertezas e ajudar os motoristas a tomarem decisões mais lucrativa. so se torna possível graças à contínua coleta e processamento de dados sobre padrões de trânsito e localização e comportamentos de passageiros e motoristas. Os esforços tanto de desenvolvimento, quanto retóricos da empresa evidenciam a ambição de gerenciar e mitigar incertezas. Isso é ilustrado pelas soluções de forecasting da plataformas, voltadas para a predição e o gerenciamento das dinâmicas espaço-temporais do que é chamado de “mundo real”, conforme é visível em publicações no blog de engenharia da Uber e em aplicações de patente, por exemplo. O desejo de antecipar dinâmicas futuras por meio de dados também é evidenciada peloque Rosenblat and Stark chamam “trabalho algorítmico” dos motoristas Uber.
A Uber é um caso paradigmático de precarização do trabalho pelo que é conhecido como “economia de bicos” ou “economia de compartilhamento”. De certa forma, não surpreende que este processo seja frequentemente chamado de “uberização do trabalho”. A incorporação de modelos preditivos à rotina dos motoristas reverbera o que Adrian Mackenzie identifica como uma generalização da predição na vida cotidiana, ou seja, a presença crescente da ordenação algorítmica de preferências e recomendações, reconhecimento de padrões e previsão de demanda voltados à estabilização de resultados e ações futuros.
A mistura perigosa de performances datificadas, precarização e informalização do trabalho, e pobreza é particularmente tóxica durante uma pandemia que vem se caracterizando pela incerteza que impregna todas as esferas da vida.
Managing uncertainty in a pandemic
Desde que a Covid-19 passou a tomar conta dos nossos pensamentos e afetos, o mundo real parece estar se tornando ainda mais real, e nossa relação com a predição, um pouco mais íntima. O mundo como o conhecemos está se transformando rapidamente, e às vezes é difícil acompanhar os números que nos dizem o que está acontecendo hoje e o que esperar do amanhã: quantos casos? Quantos mortos? Quantos dias até voltarmos ao “normal”? A resposta muda dia após dia. O novo coronavírus distorceu nossa experiência de tempo e espaço. Um agente invisível, que podemos ou não estar carregando dentro de nossas células ou na superfície de nossas roupas, rapidamente perturbou as referências sólidas em torno das quais nos acostumamos a organizar nossas rotinas Enquanto uma ampla variedade de dados, modelos preditivos, projeções e representações visuais tentam tornar seus efeitos um pouco mais inteligíveis, o desconhecido continua encontrando modos de nos confrontar por ângulos inesperados. Qualquer lampejo de certeza rapidamente se prova efêmero e nenhuma projeção ou infográfico animado dá conta de amenizar isso. De certa forma, nossa narrativa dataísta que privilegia ideais de verdade datificados e orientados para a predição é progressivamente desestabilizada. A noção de “dataísmo”, como explica José van Dijck, diz de uma crença na o “objetividade da quantificação” potencializada pela datificação do comportamento e da socialidade humanos em plataformas de mídia digital. Sim, continuamos contando — contando pacientes, contando leitos, contando corpos, contando os dias — mas nosso ritmo mudou.
Apesar da sensação globalizada de incerteza, alguns lugares parecem mais incertos do que outros. Aqui no Brasil, o novoepicentro da Covid-19, o “mundo real” encontra pitadas de realismo fantástico. Entre subnotificações, falta de testes, infindáveis conflitos entre os posicionamentos de autoridades de saúde e os do presidente Jair Bolsonaro, notícias sobre valas coletivas e notícias falsas sobre caixões cheios de pedra, os brasileiros se vêem em um cenário no mínimo caótico. Enquanto isso, o número de mortes segue aumentando à medida que as camadas mais pobres da população são afetadas pelo vírus e por um sistema econômico e social colapsado.
Entre aqueles apanhados pelo desamparo estão muitos dos motoristas Uber no Brasil. O país é o segundo maior mercado da Uber fora dos Estados Unidos. Desde que chegou por aqui em 2014, a plataforma rapidamente se posicionou como uma solução de mobilidade para comunidades mais pobres e menos assistidas pelo transporte público, forjando um papel quase infraestrutural. Ela chega onde muitos taxistas se recusam a ir e onde o transporte público é deficitário, como em favelas e periferias. Além disso, pegar um uber pode ser mais tão barato quanto pegar um ônibus, e, em geral, muito mais rápido. Para além disso, ela também sustenta uma posição ambígua e privilegiada como uma salvadora em meio a altas taxas de desemprego, e muitos motoristas dependem da plataforma como principal fonte de renda. Neste momento, no entanto, os motoristas são forçados a desacelerar. Alguns relatam uma queda de 90% no movimento no movimento.
Lidando com tempos incertos: respostas da Uber vs. experiências dos motoristas
As respostas da Uber à pandemia fazem pouco para apaziguar a sensação de incerteza. Dentro do pacote de “recursos”direcionado a motoristas brasileiros, a plataforma anunciou uma “auxilio financeiro” com duração de até 14 dias para “parceiros” diagnosticados com Covid-19 ou classificados como casos suspeitos ou parte de grupos de risco. Sua elegibilidade deve ser atestada por documentos oficiais de autoridades de saúde contendo informações detalhadas. A assistência não tem um valor fixo, comum a todos os motoristas assistidos. Ao invés disso, a quantia a ser recebida é calculada com base nos rendimentos médios do motorista nos últimos três meses, estando intimamente vinculada à performance individual de cada um. A própria política que informa a assistência é efêmera parece incerta e de curto prazo, já que a plataforma indica que podem ser atualizadas em pouco tempo. As regras descritas acima foram atualizadas no dia 17 de abril e eram válidas até o dia 8 de maio, tendo sido posteriormente estendidas até o dia 8 de junho. Tudo isso é exacerbado pelo tratamento paradoxal da noção de “risco”. Quando um motorista solicita a assistência, sua conta é automaticamente desativada, por motivos de segurança. Isso não garante, no entanto, que ele será atendido. O motorista é assim colocado em uma posição dúbia: ao mesmo tempo em que ele representa um risco, e portanto não pode trabalhar, ele não está em risco, e, por isso, não receberá nenhuma assistência.
Para conhecer melhor a perspectiva dos motoristas, entrevistei Giacomo, Antônio e Verón, três motoristas que trabalham na região metropolitana de Belo Horizonte, cidade populosa com mais de 2.5 milhões de habitantes e capital do estado de Minas Gerais. Também analisei mais de 50 comentários mais de 50 comentários deixados em uma postagem no YouTubepublicada por Samuel, um motorista e YouTuber que compartilhou minhas perguntas com seus seguidores. No momento da escrita deste artigo, todos os três entrevistados continuam trabalhando. Enquanto dirigem, o Sars-Cov-2 pode estar dando uma volta em seu banco de trás, um risco agravado pelo falta de cuidado de alguns passageiros. Giacomo estima que de dez passageiros por ele transportados, dois teriam usado máscara. A esposa de Antônio é diabética, grupo de risco para a Covid-19. Ela precisa de uma dieta balanceada, e ele decidiu continuar trabalhando para que possam pagar por isso. Para se proteger, comprou máscaras e álcool em gel, e embora pudesse requerer um único reembolso no valor de R$20,00 oferecido pela Uber para aquisição de produtos de higiene, ele se optou por não fazê-lo. “Uma ajuda irrisória”, diz, “é um desaforo”. Os motoristas compartilham a sensação de que o movimento se afrouxou, o que significa ficar algumas horas parado dentro do carro esperando (e, portanto, sem ganhar). O trabalho ficou um pouco mais solitário. Após ter o filho de 19 anos assassinado, Verón relata ter ficado parado por mais de dois anos, “e aí eu conheci os aplicativos”. Desde então, ele vê dirigir para a Uber como um tipo de terapia e uma oportunidade para conhecer novas pessoas. Ele nota que desde o início da pandemia, os passageiros se tornaram menos inclinados a conversar durante as corridas.
A maior parte dos motoristas que responderam à postagem de Samuel parece terem desistido de dirigir por enquanto. Medo e segurança figuram como as principais razões para isso: “eu já andava com medo antes, imagina agora”, escreve um deles. Trabalhando ou não, os motoristas logo sentiram as consequências financeiras da pandemia. Muitos estão devolvendo os carros alugados (cerca de 160 mil, segundo informações de locadoras). Outros ainda não sabem como pagarão a próxima parcela do veículo que comparam precisamente para trabalharem como motoristas de aplicativo. Muitos recorreram ao auxílio emergencial do governo, no valor de R$ 600,00 mensais. Algumas das solicitações foram aceitas, algumas recusadas. A maioria dos motoristas segue encarando a mensagem “em análise” na tela de seus celulares e computadores, acompanhada da recomendação ambígua, com doses de cinismo, para “tentar novamente amanhã” — alguns deles vem “tentando novamente amanhã” há mais de um mês. Quanto à assistência da Uber, a grande parte dos motoristas não é elegível. Prevalece um sentimento geral de descrédito na “mãe Uber”, como alguns costumam se referir à plataforma, por vezes ironicamente, mas nem sempre: “a Uber não faz nada por nós”.
Mas a algo realmente sob o sol?
Quando lhes peço para descrever o atual momento em uma palavra, motoristas transitam entre “incerteza”, “medo”, “frustração” e “resiliência”, “perseverança”, “aprendizado”. Mas o que isso significa? Seriam estes sentimentos novos? Olhar para como a pandemia afetou motoristas Uber pode ser mais produtivo pelo que ela torna visível do que pelo que traz de novo. As circunstâncias em que nos encontramos nos convidam a desfamiliarizar um estado de precariedade recentemente atualizado, mas há muito naturalizado. Como sugere Judith Butler, quando perguntamos sobre as condições dos motoristas Uber sob a pandemia, “nós também estamos perguntando sobre as condições de vida e morte que sustentam a organização social do trabalho”.
A incerteza não é nenhuma novidade. Tanto quanto estão acostumados a serem “contados“ — trabalhando sob um regime altamente datificado, sendo continuamente atrelados às métricas de suas performances— os motoristas Uber também estão acostumados a contabilizar. Tentar estimar seus ganhos diários enquanto lidam com a taxa de serviço variável cobrada pela Uber ao fim de cada corrida, calcular gastos com combustível e manutenção, planejar o pagamento do aluguel ou das parcelas do carro, tudo isso é parte de sua rotina. Eles também dedicam tempo e energia à criação de estratégias e metas para otimizar sua produtividade. A vida como motorista Uber é marcada por uma orientação precária de à preditibilidade de curto prazo, enquanto o futuro continua obscuro.
Quando trazemos o risco de volta à equação, as condições de vida e morte se tornam ainda mais evidentes. Butler pergunta: “quem arrisca vida enquanto trabalha? quem trabalha até morrer?”. Trabalhar até morrer é uma metáfora um tanto comum para os motoristas. Como um dito motorista que entrevistei em 2018, pouco tempo após um dano causado a seu carro o impedir de trabalhar por mais de 20 dias, “agora é a hora que eu entro na Uber pra gastar. Enquanto o corpo aguentar, eu vou indo”. Infelizmente, a presença da morte vai além da metáfora. O medo da violência é um forte componente de experiência compartilhada dos motoristas que se veem vulneráveis a assaltos, sequestros e assassinatos. Não é raro nos depararmos com notícias sobre corpos de motoristas Uber encontrados algum tempo depois de serem reportados como desaparecidos.
Assim, enquanto o modelo de negócios e o desenvolvimento tecnológico da Uber gira em torno da mitigação de incertezas por meio de processamento de dados e modelos preditivos, os motoristas, de seu lado, estão bastante acostumados a gerenciar incertezas às próprias custas. A diferença reside na escala. A Uber quer estabilizar o mundo real, prever a demanda, gerenciar o trabalho e racionalizar a dinâmica das cidades pelo mundo. No caso os motoristas, a incerteza os atinge mais de perto. Trata-se de pagar as contas do mês e sobreviver por mais um dia. Trata-se de sentimentos de medo, desamparo, esperança, resiliência, orgulho e cansaço.
Já faz tempo que os motoristas estão cientes de como a precariedade constitui seu cotidiano, e lutam para fazer a diferença, organizando-se em associações, organizando protestos e buscando conversa e tanto com representantes do poder público, quanto levando propostas à própria Uber. Tarifas mais altas e mais segurança estão no topo de sua lista de demandas. Por enquanto, não enxergam nenhum sinal de melhores condições no horizonte do retorno à “normalidade”. Alguns argumentam que este é, na verdade, o momento certo para fazerem com que suas vozes sejam escutadas — “mas tem gente que é cega e continua trabalhando se arriscando por esmolas”, lamenta um motorista na publicação de Samuel. Enquanto a incerteza se agiganta, a urgência parece falar mais alto. Pergunto a Giacomo qual a maior necessidade dos motoristas no momento. Sem hesitação, ele me diz: “o que precisamos é de corridas. Precisamos de corridas”.