Photo credits: Vitor Flynn / Le Monde Diplomatique Brasil

[BigDataSur] “WhatsApper-ing” por si só não salvará a desordem política brasileira

Este artigo reflete sobre o papel dos “WhatsAppers”, definido como ativistas sociais que apropriam o WhatsApp como plataforma principal de organização e comunicação, em relação à ascensão do Bolsonarismo no Brasil. Os recursos do uso do WhatsApp pelos atores sociais são explorados à luz das respostas ao Bolsonarismo, juntamente com suas implicações no momento atual da crise.

Por Sérgio Barbosa

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A pesquisa ilustrada explora as possibilidades do WhatsApp e sua apropriação pelos WhatsAppers no Brasil, aqui definidos como ativistas sociais que apropriam o WhatsApp como plataforma principal para organizar e se comunicar. Exploro a importância do contexto do Sul Global na formação de tais recursos, concentrando-me nas epistemologias locais que superaram a estrutura da mídia tradicional brasileira. Como mencionado em outro lugar, a análise empírica combinou diferentes métodos qualitativos, fornecendo insights sobre o repertório de comunicação e ação do grupo estudado, não sem mencionar reflexões sobre ética da pesquisa e suas implicações no contexto estudado.

WhatsAppers: Rumo a uma nova agenda de pesquisa

Esta pesquisa decorre de uma análise das interações sociais do UnidosContraOGolpe (UCG), grupo formado por ativistas esquerdistas no Brasil e organizado em um “grupo privado” do WhatsApp. O UCG surgiu em 2016 para se opor ao “golpe” que removeu a presidente Dilma Rousseff do poder. O estudo de caso resultou na primeira dissertação empírica na América Latina para investigar o ativismo digital nos grupos privados do WhatsApp como um campo emergente de ação política. Para isso, foi utilizada uma análise ‘meso-micro’ – no nível meso, para identificar o modus operandi das interações no grupo e, no nível micro, para capturar motivações, tensões e expectativas individuais. No cerne da investigação, a identidade do pesquisador foi revelada, seguindo os atores sociais por meio de seu ambiente íntimo de bate-papo. A pesquisa adotada foi “engajada” cujo objetivo é dar voz aos atores sociais. Em termos práticos, foi aplicado uma triangulação de métodos qualitativos, incluindo a etnografia digital (para identificar e analisar a prática de atores sociais dentro do domínio do bate-papo, através de uma longa perspectiva de “zoom” nas interações sociais do grupo), análise de conteúdo de mensagens selecionadas (para entender como o grupo emergiu organicamente e auto-organizou-se de maneira contingente) e quinze entrevistas semiestruturadas em profundidade (para extrair valores e motivações dos participantes).

Esta dissertação argumenta que os WhatsAppers são caracterizados por sua capacidade de se apropriar do grupo privado de bate-papo como um meio de participar também da vida política. O envolvimento com o ativismo político torna-se um assunto íntimo e familiar, mediado por um dispositivo pessoal e onipresente, que permite uma abordagem única da mobilização. Em linhas gerais, todos/as podem ser o/a WhatsApper, incluindo aqueles/as que não eram politicamente ativos/as anteriormente. O/A WhatsApper pode ser alguém que já está entrelaçado em outras redes sociais de política e mobilização ou não; eles/elas podem ser alguém de classe pobre, média ou rica. Em outras palavras, os/as WhatsAppers interagem digitalmente com outras pessoas, combinando ações políticas online e offline. À luz da sociologia digital, o estudo de caso revela que o WhatsApp se destaca como uma plataforma para o engajamento cívico, promovendo novos espaços de ativismo digital por três razões principais: o aplicativo de bate-papo (1) oferece formas estruturalmente novas de participação política e engajamento coletivo, (2) cria comunidades de interesse mútuo e (3) promove a tomada de decisão coletiva e ações autônomas individuais em pequena escala. No entanto, há desvantagens e limites, tais como: robôs podem influenciar as conversas no WhatsApp, usuários falsos podem invadir grupos públicos e privados e os membros do grupo podem ser ameaçados por ataques de vigilância.

Bolsonarismo: no seio da crise política brasileira

Em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, o Brasil registrou um desmatamento recorde e uma queda para zero das aplicações de multas ambientais. Bolsonaro nomeou uma ministra de direitos humanos que ficou conhecida por pregar a abstinência sexual como política do estado. Os filhos do presidente estão sob investigação de crimes e corrupção. Além disso, Bolsonaro nomeou um secretário de cultura exaltando a propaganda nazista. Além disso, toda semana o “anti-presidente” brasileiro ataca abertamente a imprensa e recentemente foi considerado o pior líder político a lutar contra a pandemia de Coronavírus.

O cenário político em que surge o Bolonarismo é amplamente reconhecido como reflexo da crise de representação e participação política e descrença generalizada nos partidos tradicionais. O Bolsonarismo pode ser entendido como “um fenômeno político que transcende a figura de Bolsonaro e se caracteriza por uma visão de mundo ultraconservadora, retornando aos valores tradicionais e à retórica nacionalista e patriótica”. Diante desse cenário, uma questão urgente deve ser colocada: o que realmente está acontecendo com a democracia brasileira?

Olhando para trás, olhando para frente

O Brasil é um país extremamente desigual, em múltiplas dimensões, entre as quais, o acesso à Internet. Parte da população semianalfabeta reúne suas informações quase exclusivamente por meio de mensagens visuais, áudios e vídeos de milhares de grupos do WhatsApp, graças às “taxas zero de dados móveis” fornecidas pelas empresas de telecomunicações que substituíram as mensagens curtas de texto do celular. O contexto da América Latina é uma excelente base de testes para o estudo das interações sociais no WhatsApp, uma vez que “96% dos brasileiros com acesso a um smartphone utilizam o WhatsApp como veículo principal de comunicação interpessoal”. Segundo o Instituto Reuters, 53% dos brasileiros usam o “ZapZap” (como o aplicativo é conhecido de forma geral no país) para encontrar e consumir notícias. Os cidadãos comuns também usam o “ZapZap” para pedir pizza, manter contato com a família, transferir dinheiro, marcar consultas médicas, aprender, fofocar, compartilhar vídeo pornô e namorar.

Enquanto os WhatsAppers do UCG estavam convocando chamadas para a ação política, ativistas da extrema-direita estavam se articulando em grupos públicos e privados do WhatsApp e além, combinando também atividades online e offline. Os setores progressistas não foram capazes de construir campanha digital nacional, com raras exceções, como pequenas iniciativas locais como a do UCG. Consequentemente, o potencial do ativismo digital em aplicativos de mensagens instantâneas foi posteriormente transformado em “arma” por grupos da extrema-direita que não apenas se apropriavam de grupos públicos e privados no WhatsApp, mas também utilizavam o “zap” como “ponte” para outras mídias sociais. A informação digital tornou-se uma “arma” que ainda hoje é utilizada de forma incontrolável pelos apoiadores de Bolsonaro, aproveitando a alta penetração do WhatsApp no ​​Brasil e facilitada pela baixa literacia digital da população. De fato, Bolsonaro fez uma campanha eleitoral bem-sucedida em 2018, com base em uma combinação de autoritarismo de baixo-para-cima e populismo digital. Seus apoiadores foram ajudados por robôs a disseminar conteúdo enganoso e, portanto, transformaram em “arma” vários grupos de WhatsApp.


COVID-19: WhatsAppers criativos nas margens

Este caso apresenta implicações importantes para a crise política em andamento. Atualmente, os cidadãos brasileiros são bombardeados com a desinformação relacionada ao COVID-19 e enfrentam um retrato caótico, enquanto ativistas de extrema-direita ocupam grandes espaços nas redes digitais desde as eleições de 2018. Além disso, há lições que devem ser aprendidas com a incapacidade de parar o exército digital do Bolsonarismo, quais sejam: enviar mensagens em que os cidadãos comuns possam confiar. Na crise atual, os brasileiros se comportam cada vez mais como consumidores, e menos como cidadãos, preferindo o mercado a ciência – talvez seja exatamente essa a lacuna que direciona nosso país para milhares de mortes durante a pandemia do Coronavírus.

A mídia tradicional brasileira continua discutindo quem pode ser o ideal candidato presidenciável nas eleições de 2022. No entanto, uma questão mais profunda é se os valores democráticos ainda serão mantidos até lá. A composição do governo de Bolsonaro nos lembra que a jovem democracia brasileira é agora mais capitalista, colonialista e patriarcal, e está caminhando para uma aventura política perigosa e irresponsável cujos resultados são imprevisíveis. Durante a pandemia, o distanciamento social, lavar as mãos, desinfetantes, máscaras, respiradores e os bloqueios nas cidades são privilégios do Norte Global, enquanto no Sul, muitos nem sequer têm acesso a esses serviços mínimos.

Como o título sugere, utilizar o WhatsApp apenas para conversar e comunicar não resolverá a desordem política brasileira, mas talvez WhatsAppers criativos possam fornecer uma faísca para criar redes de solidariedade nacionais-transnacionais. Em outras palavras: tomada de decisões e práticas participativas em alta velocidade para entregar mantimentos, coletar dinheiro, produzir máscaras, compartilhar informações científicas, mobilizar-se contra a desinformação relacionada ao COVID-19, alcançar famílias pobres e lutar por cenários democráticos emergentes. O UCG nos revela uma estratégia de comunicação interna muito articulada para conectar e ativar redes de solidariedade social que fomentam esperança, especialmente porque revela o campo de batalha da luta política ao permitir informações científicas compartilhadas, engajamento cívico, mobilização coletiva e empatia. Por fim, a coordenação de atividades on-line combinada com ações nas ruas pelos WhatsAppers reinventa o ativismo digital em tempos de pandemia.

Sobre o autor

Sérgio Barbosa é doutorando no programa “Democracia no Século XXI”, no Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra, e bolsista Sylff, finaciado pela Tokyo Foundation for Policy Research. Ele é membro da Technopolitics, uma rede de pesquisadores que liga o Brasil e o Equador à Espanha, Portugal e Itália. Sua pesquisa explora as formas emergentes de participação política vis-à-vis as possibilidades oferecidas pelos aplicativos de mensagens instantâneas, com ênfase no WhatsApp para ativismo digital e mobilização social.

Agradecimentos

O autor agradece a Silvia Masiero por sua cuidadosa revisão (e além) e deseja agradecer Charlotth Back e Jeroen de Vos por seus comentários e sugestões. Ele também agradece a Stefania Milan e Emiliano Treré pelo lançamento da iniciativa BigDataSur. Este artigo recebeu financiamento do Fundo japonês Sylff (Ryoichi Sasakawa Young Leaders Fellowship Fund).